Sobre "O Guia da Família Perfeita"
- Melissa Tavares
- 26 de jul. de 2023
- 4 min de leitura
Essa comédia dramática canadense, disponível na Netflix, faz uma crítica à atual dinâmica de uma família de classe média na criação de seus filhos. Contado a partir da perspectiva do pai de uma adolescente, que também tem um menino mais novo em seu segundo casamento, ele levanta a indagação que acredito ser feita por muitos pais: meus filhos recebem amor, boa educação, apoio para desenvolverem seus interesses, não têm maiores problemas além daqueles que são inerentes a se estar vivo num mundo de relações imperfeitas, então por que não está dando certo?
Em um primeiro plano, a história mostra o efeito das redes sociais na dinâmica familiar e esse é um assunto que requer a constante reflexão de todos os que participam da formação de crianças e adolescentes. Como questão central está a crítica à lógica do sucesso, do melhor desempenho como métrica para a felicidade e já por isso o filme vale a pena. O que achei mais interessante, contudo, é que nele é possível vermos duas questões transversais que são importantíssimas e difíceis de serem percebidas nas nossas situações cotidianas e é sobre esses dois aspectos que pretendo tratar aqui.
O primeiro diz respeito à profunda impregnação do consumo nas relações entre pais e filhos. Não estou falando do consumo de bens somente, mas principalmente da transformação de relações em produtos. A primeira cena do filme já diz muito sobre como a relação entre os pais e a escola deixou de ser uma relação marcada pela confiança e passou a ser uma relação de consumo. A escola passou a ser um produto e como cliente, os pais chegam com suas listas de demandas do que querem que seja entregue no “serviço de educação escolar”. Além de desenvolver as habilidades cognitivas e de reflexão das crianças, agora a escola também precisa entregar “brindes” para os pais. Indo muito além do que se entende por envolvimento da família no processo escolar, são promovidas performances que as crianças precisam desempenhar e que, por vezes, extrapolam a própria compreensão dos pequenos, mas que têm a estética necessária para os vídeos e fotos que alimentam as redes sociais da família. No filme, ao perceber esse exagero quando fala da festa de formatura do filho no jardim de infância, a mãe coloca sua perspectiva: essa dinâmica já está dada, o que fazer? Não dá para que só o seu filho não tenha a festa de formatura, não é mesmo?
Precisamos tomar consciência dessa corrente que nos empurra em determinada direção.
Esse avanço da lógica do consumo na criação de filhos é de uma capilaridade impressionante. Vai desde o pai dando dinheiro para filha por cada nota alta que tira na escola (motivação ou remuneração?), passando pelo reordenamento do cotidiano em que se acredita ser necessário ter que contratar aula para tudo (cada vez mais raro ver crianças jogando uma pelada), chegando a situações em que as crianças ou adolescentes começam a “dar defeito” por não cumprirem com as expectativas de desempenho e é necessário contratar os experts, médicos e terapeutas que prestam serviço de “conserto” desses filhos ou da relação que os pais têm com eles. A indústria farmacêutica, sempre presente em nossas vidas seja na medicalização do sofrimento ou no doping para a performance na vida cotidiana, está representada na trama pelos remédios para dormir dos pais, no uso recreativo que a filha faz e na pressão que há para que se medique os filhos como uma solução imediata para acabar com os problemas que preocupam seus pais.
O segundo e mais importante aspecto das dinâmicas atuais de que acho relevante falar é a exploração da frustração e medo dos pais mediante a produção de saberes que investem na ideia da incapacidade deles em darem conta dessa função. Uma coisa é produzir reflexões sobre o mundo à nossa volta, buscar conhecer e se informar sobre o que está acontecendo e em boa medida preocupar-se, mas outra bem diferente é falar sobre essas mudanças como uma visão apocalíptica do mundo. A cultura do medo promove essa insegurança generalizada: ela é boa para o mercado.
As mudanças no mundo estão ocorrendo de forma mais acelerada e isso realmente gera incertezas. Pelo mesmo motivo, a diferença entre as gerações está ainda mais acentuada. São millenials, geração X, Y, Z com questões novas, sim, mas não são seres de uma outra espécie. Somos todos contemporâneos nesse mundo que compartilhamos e produzimos.
No filme essa distância entre as gerações pode ser vista no papel do avô da adolescente que mostra bem como o saber dos mais velhos acaba sendo perdido pela falta de empatia entre esses avós e os pais. Para a geração mais velha, criar filhos é uma coisa clara e natural e seria a fraqueza ou insegurança dos pais que estaria estragando os filhos. Essa percepção simplista impede que se vá além das críticas. Os avós podem assumir um papel estruturante quando buscam a compreensão da dinâmica atual e das questões que seus filhos enfrentam enquanto pais. Nesse contexto é possível transmitirem seu saber e investirem na confiança de que os pais precisam para buscarem em si mesmos as balizas do que é razoável ou não nas práticas que se desenrolam à sua volta. Principalmente, esses avós podem ser aqueles a oferecerem acolhida e a compreensão de que, assim como nos outros aspectos de nossas vidas, não há um único caminho a ser seguido e que os buracos e tropeços fazem parte da caminhada, tanto dos pais, quanto dos filhos.
Não é possível nem desejável voltar ao que era antes, mas tampouco se pode deixar as coisas como estão. Com a internet, informações e pessoas são acessados pelos filhos sem mediação. Nem os pais, nem os professores ocupam mais um lugar acima de questionamentos. Por outro lado, a nova cartografia dessas relações favorece que alianças sejam feitas. Parcerias com pessoas e instituições que compreendam essas dinâmicas e que atuem no empoderamento das capacidades individuais e na valorização da cooperação. Crises acontecerão e avós, grupos de pais, psicólogos, médicos e professores podem e devem ser parte dessa empreitada, mas é preciso que os pais façam alianças com aqueles que fortaleçam as relações entre eles e seus filhos e que atuem no sentido de garantir que haja diferentes formas de enfrentarmos esse grande desafio que é o cuidar de outro ser humano, pois como o filme mostra, às vezes essa tarefa pode ser realmente difícil.


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